FC19#13 💰Vacinas, capital e esperança
A polêmica sobre a reabertura das escolas e a capitalização da esperança são nossos destaques.
Eu sou Cláudio Cordovil, e hoje é dia 27 de julho de 2020.
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💰Vacinas e a capitalização da esperança
Imagem de Gerd Altmann por Pixabay
Como sempre, destacamos aqui o que foi assunto na semana anterior. E certamente, na semana passada, um dos fatos mais relevantes foi a divulgação dos supostos avanços obtidos nos resultados das vacinas desenvolvidas através do convênio Oxford/AstraZeneca e da chinesa Cansino pela revista Lancet. Na semana retrasada, a Moderna também havia divulgado resultados de seus estudos preliminares.
O que tenho observado é muito destaque na cobertura jornalística sobre as potenciais virtudes (“esperança”) das vacinas e pouca informação sobre o alcance real de tais promessas (“expectativa”).
A Wired resolveu colocar o dedo na ferida sobre a cobertura entusiástica da mídia, a respeito de algumas vacinas candidatas. Em artigo corajoso, comparou as afirmações dos comunicados de imprensa (press releases) com os achados publicados nos respectivos artigos científicos. A verdade é que os releases foram grandiloquentes, se comparados aos achados nos artigos originais. Money talks.
Se os jornalistas não começarem a fazer perguntas delicadas, isto irá se converter no ambiente perfeito para os simpatizantes do movimento antivacina: ‘Veja o que eles esqueceram de nos falar sobre os riscos’.
Wired
“Esperança é sempre esperança contra a evidência”, lembra-nos o filósofo Alphonso Lingis. Gosto de distinguir “esperança” de “expectativas”. Em minha tese de doutorado, defini “esperança” como “expectativa com ressonância emocional”. “Expectativa”, nesse caso, poderia ser definida como “representações em tempo real de situações e capacidades tecnológicas futuras”.
Por este critério, diríamos que, na cobertura nacional sobre as vacinas, têm predominado as esperanças.
Expectativas realistas, que poderiam ser baseadas numa análise desapaixonada sobre os atuais resultados das vacinas inglesa e chinesa, ficaram em segundo plano na mídia e nas redes sociais. Nem mesmo os cientistas brasileiros ousaram apresentar uma mirada crítica sobre os resultados, até agora divulgados com algum estardalhaço.
Não custa lembrar que promessas são o motor da bioeconomia e a mídia é o alto-falante de esperanças que, mais adiante, poderão se revelar malogradas. Promessas terapêuticas foram objeto de minha pesquisa no doutorado. Neste caso, as relacionadas às células-tronco do cordão umbilical (alguém ainda se lembra delas?).
Na economia política da esperança, a mídia é um player essencial. A valorização das ações destas empresas na Bolsa é o pote de ouro no final do arco-íris. No sábado (25/7), o New York Times publicou uma matéria exemplar sobre a relação entre as atuais manobras especulativas na Bolsa e a promessa de uma vacina. Promessas rendem milhões.
Sem uma vacina concreta, as meras especulações sobre seu progresso já enriquecem os laboratórios e os fazem acumular capital para engordar a conta bancária de seus acionistas e altos executivos ou reaplicar em sua produção. A grande imprensa nacional não parece se importar muito com isso, a julgar pelo tom otimista e grandiloquente que tem assumido em sua cobertura.
Mas, aqui e ali, na imprensa especializada (ou mais qualificada) internacional, alguns sinais de alerta sobre a cautela que devemos ter com nossas esperanças em relação à vacina “de Oxford” (curioso que se deixe em segundo plano o fato de ser uma parceria com a AstraZeneca) e à vacina chinesa da Cansino.
Na semana retrasada, a candidata da Moderna também merecera luzes na ribalta midiática. Mas a empresa já começa a enfrentar sérios problemas nos tribunais, fato que passou despercebido na cobertura nacional.
A sociologia já demonstrou que é da natureza da economia da inovação o acionamento de expectativas nas fases precoces de desenvolvimento de uma tecnologia. O que se critica é o manejo exagerado de expectativas (overhype), de forma a convertê-las em esperanças públicas.
Inúmeros estudos atestam que a bioeconomia emergente depende cada vez mais de valores e potenciais econômicos futuros com caráter de promessa do que propriamente de seu uso presente.
Assim, diante do que foi dito, como calibrar nossas esperanças, de forma a transformá-las em expectativas razoáveis? O primeiro passo seria vasculhar as redes sociais em busca de informação mais qualificada. E foi isso que fizemos, de forma bem preliminar. Até o momento, os resultados apresentados na grande imprensa só nos permitem ter um otimismo cauteloso.
Destaco algumas matérias reveladoras nesse sentido. Em entrevista a Alexandra Sifferlin, a ‘setorista’ de vacinas do Medium traz alguns dados bem esclarecedores. Especialistas ouvidos pelo Washington Post advertem que estes testes iniciais envolveram um pequeno número de pessoas, avaliadas em um curto espaço de tempo. E que elas precisam comprovar eficácia e segurança em estudos mais amplos e em um tempo dilatado, antes de serem produzidas em massa.
A já citada Wired resolveu investigar o que os pesquisadores da vacina de Oxford resolveram chamar de “minor side effects” entre os participantes do estudo. Não são tão brandos quanto se afirma nos releases. A mesma publicação já havia mostrado que esta vacina corre bem nos testes, é segura e provoca uma resposta imune. Mas que ainda era cedo para afirmar que funcionará em humanos. Ben Adams, da Fierce Biotech, também faz um relato cauteloso do ponto em que estamos, com relação a vacinas, e critica o editor da Lancet por ter soltado foguetes, em um tweet , na véspera da divulgação dos artigos: algo não recomendável a editores de uma das mais respeitadas revistas médicas do mundo. Detalhe: na semana anterior, as ações da AstraZeneca na bolsa tinham chegado às alturas. No sábado (25/7), já havia quem, com conhecimento de causa, explicasse o fato de elas terem posteriormente despencado. E isso tem a ver, em parte, com os efeitos colaterais apontados nos testes iniciais (e minimizados nos releases). Em outra frente, Fierce Pharma mostrou a quantas anda a precificação da futura vacina, entre as mais avançadas nos testes. E o USA Today resolveu pesquisar qual deveria ser o preço da vacina para os americanos. Certamente é melhor começar a discutir isso agora e não na última hora, quando os preços podem disparar.
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🎓A volta das aulas presenciais: um debate em aberto
Outro assunto de destaque na semana passada foi a discussão sobre a conveniência de se reabrir ou não as escolas. O retorno às aulas tem sido preconizado como uma das últimas etapas no relaxamento do distanciamento social.
Europa e Estados Unidos, em fases distintas do Brasil com relação à evolução da pandemia, já cogitam reabri-las em agosto ou setembro. No Reino Unido, que carrega o recorde histórico de mortes pela Covid-19 no Velho Continente, ensaia-se uma reabertura gradual. Creches e algumas faixas do ensino fundamental já estão autorizadas a funcionar. Os estudantes mais velhos voltariam aos bancos escolares em setembro.
Os EUA enfrentam o desafio de retomar o ensino presencial com taxas de contágio ainda altíssimas. Dependendo da cidade, ele seria retomado em agosto ou setembro. Mas ainda não há uma decisão definitiva a este respeito, o que deverá acontecer no próximo mês. Para Trump, as escolas deveriam reabrir em setembro, mas a maioria dos estados não sabe ainda como proceder. Afinal, em 40 estados norte-americanos, o número de casos e mortes tem aumentado.
No Brasil, país continental com estágios variados da curva epidêmica, já há quem tenha iniciado a retomada das aulas presenciais. É o caso das escolas particulares de Manaus. No entanto, as escolas estaduais e municipais continuam sem previsão de retorno. O estado de São Paulo prepara volta gradual às aulas, alternando aulas presenciais e virtuais para o início de setembro. Isso se todos os municípios permanecerem por um mês na faixa amarela de flexibilização. Já a prefeitura do Rio de Janeiro informa que as escolas particulares podem retomar suas atividades presenciais a partir de 3 de agosto, de forma voluntária. O governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), anunciou, na sexta-feira, (24) que iria prorrogar a suspensão das aulas presenciais em todas as escolas, universidades e faculdades, inclusive cursos livres, das redes de ensino públicas e privada, até o dia 31 de agosto. A Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Fiocruz) preparou uma nota técnica sobre o retorno às atividades escolares. O Fantástico (26/7) apresentou uma matéria a respeito.
Uma coisa se sabe até o momento, mas tudo pode mudar. Crianças tendem a se infectar com o coronavírus com menos frequência e com sintomas mais brandos que os adultos, o que não exclui a ocorrência de alguns casos graves.
O que não se conhece ainda é o grau de extensão com que as crianças são capazes de transmitir a doença. A falta de testes no início da pandemia é parte da razão para as lacunas em tal conhecimento.
As crianças não parecem ser super-transmissoras, mas como as escolas foram fechadas em março nos EUA, quando o vírus começou a circular mais amplamente, esta resposta ainda é imprecisa. A reabertura de escolas será o campo de testes para tais conclusões.
Estudos europeus preliminares sugerem que existe menos contágio de crianças para adultos ou destas para outras crianças, especialmente quando se trata das mais jovens. A NPR traz um resumo destes estudos. Um grande estudo sul-coreano revelou que crianças com menos de 10 anos transmitem muito menos a Covid-19 do que os adultos, mas esta possibilidade não está descartada. Já aquelas pessoas entre 10 e 19 anos podem transmitir o vírus tão bem ou melhor que os adultos. O Washington Post ouviu uma especialista em educação que deu 10 dicas para os pais se engajarem neste processo de volta às aulas presenciais. Já o Center for Health Journalism ouviu jornalistas sobre como cobrir a reabertura das escolas. As dicas se aplicam à nossa realidade também. É deles também um webinário que dá uma visão ampla de todos os problemas envolvidos em tal decisão.
O Centro de Prevenção e Controle de Doenças de Atlanta divulgou na quinta-feira (23/7) um comunicado e alguns “recursos e ferramentas” para auxiliar famílias e gestores na tomada de decisão. O New York Times avaliou o material como mais político do que propriamente científico, ecoando desta forma o posicionamento de Trump acerca da retomada da economia. Parte de informações errôneas, por exemplo, ao afirmar que as crianças são improváveis transmissoras do vírus, quando esta hipótese ainda precisa ser confirmada por estudos posteriores. A despeito disso, há segundo a reportagem do NYT, orientações e ferramentas interessantes para decidir e se proteger. Nunca é demais lembrar que o rastreamento de alguns clusters do vírus verificou que sua origem foram eventos escolares, como cerimônias de formatura ou encontros de adolescentes.
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Rápidas
⚡PANDEMIA COMPROMETE SAÚDE MENTAL DOS JORNALISTAS: Estudo do Reuters Institute sobre a saúde mental de jornalistas que cobrem a pandemia revelou dados preocupantes. Tão preocupantes que seus autores resolveram divulgar seus resultados preliminares. O Nieman Lab traz um resumo dos resultados. Já o Journalism.uk traz artigo de Giedre Peseckyte, descrevendo seu projeto digital intitulado On the frontlines of the pandemic.
⚡E COMO FICA A EDITORIA DE LIVROS? O New York Times tem uma seção chamada Times Insider, onde mostra os bastidores de sua redação e o trabalho de seus colaboradores. Agora, eles resolveram mostrar como estão se virando, em tempos de pandemia, com a Editoria de Livros. A editoria é normalmente um espaço físico diferenciado das redações. Nele, estantes abrigam as centenas de livros que chegam para serem resenhados por colaboradores ou pelo próprio estafe. Agora, com o coronavirus, os jornalistas não têm mais acesso ao prédio da redação. Pauta interessante, especialmente para mim, que trabalhei um bom tempo no Caderno Idéias do Jornal do Brasil, na década de 1990.
⚡A IMAGEM QUE SACUDIU A INDONÉSIA: Talvez já se possa dizer que a pandemia tem sua imagem icônica. Ao vê-la, recordei-me, com emoção, de outra, da então estudante de jornalismo, Therese Frare, que, em novembro de 1990, fotografou, para a revista Life, um agonizante David Kirby, vítima de AIDS, rodeado por sua família, em suas horas derradeiras.
Agora foi a imagem de Joshua Irwandi que entrou para a história. A foto tirada para a revista National Geographic como parte de um financiamento concedido pela National Geographic Society, emocionou a Indonésia, um país de 270 milhões de habitantes. E dividiu opiniões. Afinal, trata-se de um país que, como aquele outro que você conhece bem, resiste a fazer a coisa certa diante da pandemia. Mais de 350 mil pessoas “curtiram” a foto em seu perfil no Instagram .
A foto de Irwandi se junta a inúmeras outras iniciativas espalhadas pelo mundo que buscam ir além das estatísticas e mostrar o impacto da covid-19 sobre as pessoas. No Brasil, um dos projetos mais representativos desta perspectiva é Inumeráveis.
⚡LACUNAS NA COBERTURA? A despeito da exaustiva cobertura sobre a pandemia, na mídia e nas redes sociais do país, ainda não vi adequadamente apurada a situação de:
Destaques da Rede CoVida
✅ Considerações sobre a interpretação dos testes na Covid-19
✅ Imunidade de rebanho sem vacina é irresponsável
✅ Webinário: Desafios da produção e acesso à vacina
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