FC19#10🐮Frigoríficos sentem na carne
O risco da gravidez na covid-19 e a saúde do trabalhador na industrialização de carnes são nossos destaques.
Eu sou Cláudio Cordovil, e hoje é dia 29 de junho de 2020.
💪Bem-vindo ao primeiro ano do resto de nossas vidas!
Ferramentas Covid-19 🛠 busca contribuir para a qualificação da cobertura jornalística nacional sobre a pandemia. É uma newsletter destinada a jornalistas, profissionais de saúde, pesquisadores, professores e público em geral, produzida pela Rede CoVida.
🦠 Para acompanhar o monitoramento em tempo real da Covid-19 no Brasil acesse: https://painel.covid19br.org/
⌚Hoje temos uma contagem de 2.204 palavras, ou uma leitura de 9 minutos.
📌Na próxima segunda (6/7), excepcionalmente, não haverá a publicação de Ferramentas Covid-19. Voltamos no dia 13/7 ( ͡❛ ͜ʖ͡❛ ) !
🐮Frigoríficos sentem na carne
Foto: Divulgação
Ferramentas Covid-19 busca sempre trazer um tema que nos parece pouco aproveitado na cobertura jornalística da pandemia. Na edição de número 7 (8/6) desta newsletter, trouxemos o caso da contaminação nos asilos, que até então não havia merecido, de parte da imprensa brasileira, uma cobertura mais detalhada. Coincidência ou não, o Fantástico, em sua edição de 21/6, fez uma excelente matéria sobre a situação dos idosos em asilos e casas de repouso no Brasil, Itália e Japão.
Hoje destacamos a situação da indústria do abate e processamento de carnes e o risco a que estão expostos os seus trabalhadores, por conta da pandemia. A meu ver, a cobertura sobre o assunto por aqui é ainda esparsa e ‘bem comportada’, talvez pelas relações amigáveis que a mídia mantém com o agronegócio. A Agência Pública divulgou matéria mais aprofundada sobre o tema. O Brasil lidera as exportações mundiais de carne bovina e de aves e ocupa o quarto lugar em carne suína. Agro é pop.
Na minha opinião, a extensão do problema tem sido subestimada, se comparamos com a dimensão que alcançou nos EUA. Falta também uma visão de conjunto da situação em todo o Brasil. Algo que deve ser resolvido com estudo que está sendo conduzido pelo IPEA sobre o tema.
Senão vejamos. Em maio, oito frigoríficos haviam sido interditados no país, de acordo com o Ministério da Agricultura. A mesma pasta informou, na sexta-feira (26/6), que o país possuía, naquele momento, seis plantas frigoríficas com atividades suspensas, das mais de 400 plantas existentes. Trata-se de um número muito pequeno de interdições, o que pode sinalizar eventual leniência das autoridades diante do problema.
É bem verdade que o mercado de carnes nos EUA é mais concentrado nas mãos de poucas empresas do setor, o que pode ter contribuído para os riscos de desabastecimento lá enfrentados e o expressivo número de casos de infecção. Até a primeira semana de junho, o país computava 20.400 infecções em 216 plantas espalhadas, em 33 estados, além de pelo menos 74 óbitos. Por conta da magnitude destes números, algo não me cheira bem na cobertura nacional, sem trocadilho.
Mais recentemente, a imprensa nacional começou a informar que os frigoríficos estão contribuindo bastante para a interiorização da pandemia no país e que os indígenas (mais uma vez) merecem atenção redobrada, como força de trabalho nestes lugares. Observa-se também a atuação do Ministério Público do Trabalho (MPT) que afirma que todos ambientes de frigoríficos estão sendo fiscalizados, seja a partir de denúncias ou do Termo de Ajuste de Conduta (TAC), um documento onde o frigorífico se compromete a fazer ou deixar fazer algo em virtude da lei. Mas será que todos os casos realmente chegam ao MPT?
O assunto surge na mídia norte-americana no início de abril, antes mesmo da estréia desta newsletter, com a informação de que a Smithfield Foods iria fechar provisoriamente sua planta de Sioux Falls, Dakota do Sul. Já em 28 de abril, Trump invocou o Defense Production Act, de 1950, para classificar o trabalho nas plantas frigoríficas como “essencial”.
Para o público brasileiro em geral, a ficha parece ter caído na semana passada, mais precisamente no dia 20 de junho, quando foi noticiado por estas bandas que o frigorífico Tönnies, o maior abatedouro da Europa, fora fechado por 14 dias, depois que 1.029 de seus empregados apresentaram resultado positivo para Covid-19. No dia anterior (19/6), o governo brasileiro anunciara uma portaria conjunta, assinada pelos Ministérios da Economia, Agricultura e Saúde, visando propor “medidas destinadas à prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da Covid-19” no setor de carnes e laticínios. O setor de frigoríficos entrou no rol de “serviços essenciais” pelo decreto nacional assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, em março.
Na quarta-feira passada (24/6) , o frigorífico de frangos Avenorte, localizado em Cianorte, no noroeste do Paraná, teve seu fechamento temporário por no mínimo 14 dias determinado pelo Ministério Público do Trabalho. Dos 3.200 funcionários, 200 testaram positivo para o coronavírus. Até o fim de maio, em todo o país, trabalhadores de 21 frigoríficos já haviam testado positivo. No mesmo dia, a Avenorte conseguiu reverter a decisão do MPT, trabalhando com equipe reduzida. O problema se repete na região Centro-Oeste e no Rio Grande do Sul.
Na Alemanha, a locomotiva da União Européia, a situação gerou amplo debate sobre as condições de trabalho nestes estabelecimentos. Por aqui, pouca coisa nesse sentido. Não é de hoje que se sabe das condições insalubres a que trabalhadores de plantas frigoríficas estão submetidos. Sobre isso vou falar mais adiante. A estas vêm agora se juntar os riscos da pandemia.
As condições peculiares de trabalho nestas plantas industriais podem explicar a razão do alto grau de contaminação potencial neste ramo de atividade. Além das baixíssimas temperaturas em certas dependências destas instalações (o que aumenta a suscetibilidade à Covid-19 e a persistência do virus no ambiente), os espaços fechados e a disposição espacial assumida pelos trabalhadores ao desempenhar suas atividades favorecem uma proximidade excessiva, fator de risco para o contágio. Além disso, o ruído das máquinas obriga a se falar alto, o que projeta partículas virais a maiores distâncias. A este respeito, o The New York Times produziu uma ilustrativa matéria (pareceu-me um pouco lenta para carregar, mas vale a pena conferir), com riqueza de detalhes em termos de visualização.
Mas como a pandemia é um grave problema de saúde pública, convém lançar um olhar mais aprofundado sobre esta indústria e a saúde dos trabalhadores a ela ligados. Sendo este setor da economia altamente competitivo, a busca do melhor preço é crucial. E, nessa lógica, o elo mais fraco dessa corrente é sempre o trabalhador, precarizado e com baixo nível de instrução. Entre a saúde e a grana, adivinhe quem leva a melhor? A competitividade exacerbada impõe ritmos acelerados, considerando que "os capitais não têm outra opção, para sua sobrevivência, senão inovar ou correr o risco de ser ultrapassados pelas empresas concorrentes".
Sinto falta de narrativas mais elaboradas sobre a questão. E também a falta do famoso ‘personagem’. Aquela pessoa, que tendo vivido uma dada situação, é entrevistada para a produção de um relato vívido e rico. A literatura e as artes dramáticas produziram obras-primas sobre o tema.
Destaco duas. Mas antes, nunca é demais lembrar que a famosa linha de montagem dos automóveis foi criada por Henry Ford, depois de ter conhecido uma linha de ‘desmontagem’ de animais, presentes em matadouros e frigoríficos. A esse respeito, separamos uma curiosa matéria para você. Fala também da violência a que está submetido o trabalhador de plantas frigoríficas, tratado como peça de uma engrenagem poderosa, despersonalizado e sujeito a todo tipo de agravos à saúde.
A literatura tem seu clássico sobre abatedouros. Trata-se do livro The Jungle (A Selva), de 1906, do escritor e jornalista Upton Sinclair. Cento e catorze anos depois, o livro ainda preserva algo de sua sinistra atualidade. A obra conta a história de uma família de imigrantes lituanos que vai trabalhar numa planta frigorífica. Nela, Sinclair denuncia as condições de vida e de trabalho degradantes dos operários do setor em Chicago. A denúncia teve efeitos imediatos. Alavancou o estabelecimento de uma lei de inspeção de carnes e outra mais abrangente sobre alimentos e medicamentos, base da criação da Food and Drug Administration (FDA), agência que controla medicamentos e alimentos nos EUA. Segue um trecho do livro:
A maneira como eles faziam isso era algo a ser visto e nunca esquecido. Eles trabalhavam furiosos em um ritmo tenso, literalmente, na corrida. Não há nada a ser comparado, exceto um jogo de futebol. Todo trabalho era altamente especializado, cada homem tinha uma tarefa a fazer. Geralmente composta por apenas dois ou três cortes específicos, e passava para outra carcaça, fazendo os mesmos cortes sobre cada um. Primeiro vinha o "açougueiro", para sangrar; com um golpe rápido, tão rápido que você não podia vê-lo, apenas o flash da faca; E antes que você pudesse perceber, o homem tinha avançado para a próxima linha, e num piscar de olhos, o vermelho estava escorrendo pelo chão.
Também em Chicago se desenrola o enredo da peça A Santa Joana dos Matadouros, de Bertolt Brecht. A trama se passa no rastro da quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. Em cena, a massa trabalhadora, os desempregados, os donos das grandes indústrias da carne e os especuladores.
Nos EUA, as narrativas jornalísticas produzidas sobre este tema tão fascinante (que é a realidade destes trabalhadores, agora agravada pela pandemia) foram mais interessantes do que as produzidas até o momento por aqui. O Mother Jones publicou uma alentada peça jornalística de primeira, mostrando a nada lisonjeira atuação da brasileira JBS, em termos de proteção aos trabalhadores nos EUA, com ênfase em “personagens”. Por aqui, a empresa andou sendo visitada pelo MPT. O Atlanta Journal Constitution seguiu pelo mesmo caminho para dar conta do temor dos operários em abatedouros de aves, no estado da Georgia. Destaques para a cobertura da Bloomberg News, USA Today e Washington Post.
É importante destacar que autoridades sanitárias informam que não há evidências científicas e de rastreabilidade que possam comprovar a transmissão do novo coronavírus pelo manuseio ou pela ingestão de alimentos.
📩Sugestões, críticas, dúvidas? Escreva para ferramentascovid19@gmail.com
🚑Gravidez como fator de risco?
Estudo publicado no Morbidity and Mortality Weekly Report revelou que mulheres grávidas podem desenvolver quadros mais graves da Covid-19 do que aquelas que não estão esperando um bebê. A conclusão é baseada em dados obtidos com mais de 8.200 pacientes grávidas e 83.200 pacientes não-grávidas com idades entre 15 e 44 anos que contraíram a doença nos EUA entre janeiro e junho de 2020. No entanto, o estudo não encontrou diferença nas taxas de mortalidade entre os dois grupos.
O que se sabe, até o momento, é que a covid-19 não é transmitida pelo leite materno ; que mais de 60% das grávidas que morreram estavam em seu último trimestre de gravidez; e que a transmissão da doença entre grávida e bebê é incomum.
Os dados epidemiológicos de covid-19 em gestantes no Brasil são praticamente desconhecidos. O único documento do ministério com números mais detalhados sobre grávidas na epidemia é um boletim epidemiológico divulgado em 29 de maio. E ainda assim, ao que parece, os casos aqui também são subnotificados.
A Rede Covida publicou recentemente um boletim a respeito da saúde e dos direitos reprodutivos no contexto da pandemia. O documento conclui com recomendações para que:
Gestores e profissionais de saúde devem definir o cuidado à saúde sexual e reprodutiva como essencial e promover o planejamento reprodutivo, a contracepção (inclusive de emergência), os cuidados maternos e neo/pós-natais e possibilitem o aborto legal. Uma agenda de políticas de saúde sexual e reprodutiva deve estar no centro da resposta à Covid-19, para garantir a alocação de recursos humanos e materiais necessários para manter tais serviços em pleno funcionamento, mesmo durante a pandemia.
📩Sugestões, críticas, dúvidas? Escreva para ferramentascovid19@gmail.com
Rápidas
⚡VACINAS: A Fiocruz anunciou na sexta-feira (26/6) que firmará acordo com a biofarmacêutica AstraZeneca para compra de lotes e transferência de tecnologia da vacina para Covid-19, desenvolvida pela Universidade de Oxford. Trata-se de uma das vacinas em fase de testes mais avançados de todas as 147 que se encontram em fase de pesquisa e desenvolvimento na atualidade. A edição #8 desse boletim trouxe uma matéria especial sobre o tema, que volta e meia aparece em nossas edições.
⚡DIGITAL NEWS REPORT 2020: Foi publicada recentemente pesquisa global feita pelo Reuters Institute, da Universidade de Oxford. Ela ouviu 80 mil entrevistados, em 40 países e seis continentes. Para discutir seus achados, a entidade lançou uma série de podcasts. O primeiro aborda os principais achados dos relatórios, com a participação de dois de seus autores. Entre os temas tratados, paywall, desinformação e queda da confiança. Você pode ouvi-lo no Spotify, Apple Podcasts ou Google Podcasts. O segundo trata do futuro do jornalismo local. A propósito, o Brasil desponta como o país em que o público está muito ou extremamente interessado no noticiário local. Você também pode ouvi-lo no Spotify, Apple Podcasts ou Google Podcasts.
⚡EPIDEMIOLOGIA PARA JORNALISTAS: A Fundación Gabo lançou o livro digital intitulado Epidemiología urgente para periodistas. É baseado no ciclo de webinários homônimo promovido pela mesma entidade. Você pode baixá-lo aqui.
WEBINÁRIOS EM DESTAQUE:
✅INTERCOM - A Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) tem uma programação com lives semanais gratuitas. As lives “Cátedra Intercom” acontecem semanalmente, geralmente às terças e quintas, às 18h. Após a realização ao vivo, as lives também ficarão disponíveis nos canais oficiais da Intercom no Facebook, Instagram e YouTube.
Para esta semana, estão programadas as seguintes lives:
30 de junho, terça-feira
A escassez dos recursos de comunicação em diferentes escalas - a utopia de um país conectado na pandemia de 2020
Com Sonia Virgínia Moreira (UERJ/Intercom), Nélia Del Bianco (UnB) e Roberta Brandalise (FCL)
📌Inscreva-se aqui📌
2 de julho, quinta-feira
Comunicação para cidadania em tempos de Covid-19
Com Cicilia Peruzzo (UERJ/Intercom), Cláudia Lahni (UFJF), Denise Terezinha da Silva (UNIPAMPA), Rozinaldo Miani (UEL), Suelen Aguiar (Estácio) e Pablo Nabarrete Bastos (UFF)
📌Inscreva-se aqui📌
✅Cobrindo o coronavirus: A tragédia das casas de repouso - USC Annenberg/Center for Health Journalism 📌Assista aqui📌
Alguém lhe encaminhou esta newsletter? Aproveite e assine! Grátis!
Gostou dessa newsletter? Então compartilhe com um amigo ! 👍
✐Confira as nossas edições anteriores!