FC19#15 ☠ A marca da maldade
O giro semanal pelas vacinas, o abre-e-fecha das escolas e a morte de 100 mil brasileiros são nossos destaques.
Eu sou Cláudio Cordovil, e hoje é dia 10 de agosto de 2020.
💪Bem-vindo ao primeiro ano do resto de nossas vidas!
Ferramentas Covid-19 🛠 é uma newsletter destinada a jornalistas, profissionais de saúde, pesquisadores, professores e público em geral, produzida pela Rede CoVida.
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⌚Hoje temos uma contagem de 2.438 palavras, ou uma leitura de 10 minutos.
⚰A marca da maldade: 100 mil mortos
No momento em que redijo este post, o Brasil alcançou a sinistra marca de 100.584 mortos pela Covid-19, de acordo com o Painel Rede Covida. Isto com menos de 150 dias após a notícia da sua primeira vítima. Famílias pranteiam a perda de seus entes queridos e tiveram que lidar, em muitos casos, com este Dia dos Pais com travo de amargura. Pode-se imaginar a dor destas famílias. A mídia esforça-se por transformar estas doloridas memórias individuais em construtivas memórias coletivas. Em vão? A edição de sábado (08/08) do Jornal Nacional foi especialmente tocante nesse sentido. William Bonner e Renata Vasconcellos dedicaram valiosos minutos daquela edição a esmiuçar o artigo 196 da Constituição Federal, música para os ouvidos de todos nós, profissionais de saúde pública, que diariamente, ao longo de nossas vidas laborais, alertávamos em vão a sociedade para o peso das desigualdades e da determinação social das doenças. O telejornal também repercutiu (no jargão jornalístico) a triste cifra; informou que “o presidente Jair Bolsonaro não se manifestou pessoalmente sobre a tragédia” e teria se limitado a repostar “parte das mensagens que a Secretaria de Comunicação do Planalto tinha publicado em uma rede social em resposta a um post do ex-ministro Sergio Moro”. Ah, ia me esquecendo: o JN também nos informou que o presidente usou as redes sociais, no mesmo dia sombrio, para comemorar a vitória do Palmeiras no Campeonato Paulista. Somos informados, através de uma interessante visualização, que a Covid-19 já é, no Brasil, a principal causa de mortalidade em 2020. O Fantástico buscou dimensionar o que significam 100 mil mortes através de um aplicativo. Somos limitados quando se trata de compreender o alcance de grandes números. O Nexo refez, através de visualizações, o caminho que nos fez chegar a esta cifra e revelou o perfil das vítimas.
Puxando pela memória, recordei-me da primeira iniciativa jornalística de tributo à memória dos que se foram por tragédias semelhantes, mas com cifras incomparavelmente inferiores, mas não menos pranteadas. Tratou-se de Portraits of Grief (Retratos da Dor), série publicada pelo The New York Times, que deu ao jornal o Premio Pulitzer por Serviço Público de 2002. Ao justificar a premiação, o board do Pulitzer destacou que a série “cobriu de forma coerente e abrangente os trágicos eventos, traçou o perfil das vítimas e acompanhou o desenvolvimento da história, local e globalmente”. Dez anos depois, celebrando a proeza, e comentando a sequência criada pelo NYT (Portraits redrawn), para apurar como as famílias enlutadas estavam, naquela ocasião, o Poynter afirmou que a série
ajudou a preencher uma lacuna na psique dos nova-iorquinos e de todos os americanos, tanto com informações e interpretações críticas quanto com um estilo compassivo.
Em Portraits Redrawn, o que se nota, paradoxalmente, é uma mirada para o futuro, e não mais um olhar para o passado. Constata-se que a grande maioria dos familiares das vítimas haviam dado a volta por cima, como tem de ser. Assim, como em Inumeráveis, estes especiais do New York Times são monumentos nacionais do luto.
Mas é bom que se diga que a memória coletiva nunca foi produto social espontâneo. Sempre foi, isto sim, resultado de embates e guerras narrativas. Maurice Halbwachs, fundador do campo dos estudos da memória nas ciências sociais, destaca, em Memória coletiva, não só o caráter seletivo de toda memória, mas também o fato de ela ser objeto de um processo de “negociação”, para que sejam conciliadas memórias coletivas e individuais:
Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela [a memória dos outros] não tenha deixado de concordar com suas [próprias] memórias e que haja suficientes pontos de contato entre uma e outra, para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum.
Halbwachs acredita que as lembranças mais difíceis de serem recuperadas são justamente aquelas relacionadas a eventos que vivenciamos sozinhos. Isto porque, nesses casos, não há com quem contar para mantermos vivas essas experiências em nossos pensamentos. Incomunicáveis, elas tendem a desvanecer . Por isso os memoriais jornalísticos, monumentos ao luto, são tão importantes.
Resta saber que país sairá deste ordálio por que passamos, que Nação renascerá destas cinzas. O modo com que lidaremos com a memória individual/coletiva sobre estas mortes será o fiel da balança.
💉O giro da semana das vacinas
A semana passada começou com uma afirmação surpreendente de Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS. Na segunda-feira (03/08), ele disse, referindo-se a uma vacina:
Não há bala de prata no momento, e pode ser que nunca haja.
Mais tarde amenizou o tom da declaração. Manobra sensata, notadamente quando se constata (08/08) que o governo norte-americano já gastou nove bilhões de dólares para desenvolvê-la. Além disso, a Johnson & Johnson assinou acordo (05/08) de um bilhão de dólares para abastecer os EUA com 100 milhões de doses de sua vacina. A nota otimista veio do Brasil, com o presidente da República assinando medida provisória (06/08) que libera R$ 1,9 bilhão para produção da vacina de Oxford e a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, afirmando (07/08) que ela seria quase totalmente eficaz com duas doses. O mundo globalizado recomenda cautela com informações desencontradas, mas é algo que não se pode controlar. Essa orquestra não tem maestro. Na Grã-Bretanha, levantamento (09/08) verificou que apenas 53% de um grupo de cidadãos pesquisados iria, com certeza ou muito provavelmente, tomar a vacina se esta estiver disponível. A maior rejeição foi observada entre aqueles mais céticos com relação à Ciência, turma que inclui o piloto de F-1, Lewis Hamilton, que foi obrigado a se explicar. Nos EUA, a vingança veio a cavalo, e Donald Trump colhe o que plantou com suas atitudes ambíguas com relação à pandemia. Há receio, entre as autoridades federais de saúde por lá, de que os usos eleitoreiros que Trump faz de uma futura vacina possam desmotivar a adesão à vacinação quando esta acontecer. Assim, a Food and Drug Administration (FDA) apressou-se em deflagrar uma campanha de relações públicas (07/08) para assegurar a população de que não autorizará por motivação política qualquer vacina, e se baseará nas melhores evidências científicas para tal. O pior que poderia acontecer seria repetir o fiasco quando o então presidente Gerald Ford tentou lançar, a toque de caixa, uma vacina contra a gripe suína, em 1976. Mas prudência e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Talvez não seja por outra razão que o Washington Post (02/08) publicou matéria onde profissionais de saúde alertam para o overhype com relação a uma vacina. Em bom português, o risco de se alardear promessas que, mais tarde, se revelarão infundadas. Este já foi assunto em outro post aqui, algumas semanas atrás. Em outra frente, mas ainda no campo da cautela, o mesmo jornal revela (03/08) que as autoridades norte-americanas batem cabeça sobre a logística da distribuição de uma futura vacina. Em outra matéria, mas sob paywall, o Wall Street Journal (06/08) já antecipa que as primeiras doses da vacina não serão suficientes para proteger todas as pessoas em alto risco nos EUA. Tudo isso nos remete ao abacaxi que o Facebook está tendo que administrar (07/08): como decidir sobre a qualidade da informação a respeito de vacinas que ainda estão sendo desenvolvidas? O USA Today publicou matéria, de caráter prospectivo, mostrando que o mundo nunca mais será o mesmo para as pessoas com mais de 60 anos, após a vacina.
💼O abre-e-fecha das escolas
Com o início do período letivo, cogitado para iniciar entre agosto e setembro, natural que o tema tenha ganho destaque na semana passada na imprensa norte-americana. Entre a cruz e a caldeira, os pais nos EUA opõem-se a enviar seus filhos para a escola em tempo integral, mas se preocupam com o ensino remoto. Levantamento do Washington Post (06/08) revelou que quase metade deles prefere uma solução mista, alternando aulas presenciais e online e 16% apoiam a proposta do governo de que todas as crianças voltem à sala de aula. Apesar de muitos distritos escolares pretenderem manter suas aulas online ao menos por parte do ano letivo, poucos estão preparados pata tal. Muitos professores alegam não terem sido treinados para o ensino remoto e os gestores pouco têm feito para o planejamento de aulas digitais, segundo apurou a reportagem do Washington Post. Para complicar a situação (05/08), milhões de alunos em todo o país não tem dispositivos e muito menos acesso a internet. Pais de alunos da educação especial estão especialmente preocupados (07/08) com um ano letivo de isolamento e telas de dispositivos digitais. As famílias temem que o ensino remoto deixe para trás crianças que vivem com deficiências e as prive de habilidades essenciais para uma vida independente. Para completar, escolas que decidiram reabrir já passam por problemas na primeira semana de aulas. Um distrito escolar do Mississipi (06/08) mandou de volta para casa 116 estudantes para cumprir quarentena, depois de um surto nos primeiros dias de aula. Preocupado em recuperar sua economia e com a pandemia aparentemente sob controle, Israel foi um dos primeiros países a reabrir suas escolas. O resultado não foi nada bom. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA, também recomenda cautela (04/08), mas desaconselha a abertura das escolas onde as taxas de infecção estejam elevadas. O Medium publicou matéria que diz que seria um experimento enlouquecido abrir escolas em locais com altas taxas de infecção. Já o Quênia apresentou uma solução drástica e prática (05/08): dadas as desigualdades no acesso à internet por parte dos alunos (coisa que também acontece no Brasil), as autoridades educacionais resolveram simplesmente cancelar o período letivo para este ano. Na prática, é como se todos os alunos repetissem o ano (como diziam os antigos). Mas, naturalmente, a decisão pode agravar ainda mais a desigualdade. Quando as aulas voltarem, afirmam os especialistas, o gap na curva de aprendizagem entre os conectados e os não-conectados será maior. O digital divide estudantil também foi assunto de matéria na Wired (07/08) . Tentando trazer alguma luz ao problema, a Organização das Nações Unidas divulgou relatório intitulado Education during Covid and beyond e o secretário-geral da ONU afirmou (04/08) que estamos diante de uma verdadeira “catástrofe geracional” por conta dos impactos da pandemia na educação. O Medium publicou matéria (5/8) onde afirma ser temerário reabrir escolas onde as taxas de infecção estão elevadas, especialmente agora que evidências sobre a capacidade de contágio dos baixinhos são mais robustas. Na hipótese de os norte-americanos decidirem mandar os filhos para a faculdade, o USA Today (03/08) informou o que se deve observar para que tudo corra bem. O WBUR (06/08) também, com foco nas escolas.
Rápidas
⚡ OS ESTRAGOS DE TRUMP: No ínicio da semana passada uma entrevista de Trump para a Fox News chocou os seres pensantes dos EUA. Nela, o presidente norte-americano afirmou que as crianças já poderiam voltar às escolas, por serem “virtualmente imunes” ao coronavirus. Ao que parece, isto não é o que dizem as melhores evidências da atualidade. Para esclarecer algumas dúvidas, o Medium elencou o que realmente se sabe até agora sobre crianças e infectividade. A deliberada política de desinformação de Trump também causa estragos em outras frentes. O New York Times (04/08) revelou que milhares de pessoas estariam sendo tratadas com plasma de convalescentes sem rigores científicos maiores, por conta da falação do presidente dos EUA. O resultado disso é que os pesquisadores sérios estão tendo dificuldades de concluir seus estudos com o plasma. Estaria o mesmo acontecendo no Brasil?
⚡MANICÔMIOS, PRISÕES E CONVENTOS: Em livro homônimo, o sociólogo Erving Goffman define estas instalações como “instituições totais”. Segundo ele, trata-se de estabelecimentos fechados que funcionam em regime de internação, onde um grupo relativamente numeroso de internados vive em tempo integral. Agora, na semana passada, alguns veículos deram destaque ao assunto, mas em outras instituições totais. A CNN divulgou estudo (04/08) que revela que as prisões podem transmitir a Covid-19 para comunidades próximas. O Insider (05/08) publicou o relato de Rahsaan Thomas, um detento da prisão de San Quentin, na Califórnia, condenado a 55 anos de prisão. Ele já cumpriu 19 anos e pegou Covid-19. Rahsaan revela o que é contrair esta doença em San Quentin e o pouco interesse das autoridades em adotar medidas que protejam os detentos. Ele foi finalista do Prêmio Pulitzer de 2020, como um dos apresentadores do podcast Ear Hustler . O USA Today informou (04/08) que 13 freiras morreram de Covid-19 em um convento em Michigan e 17 em Nova Jersey.
⚡DESINFORMAÇÃO: Se a boa informação é paga, através de mecanismos de paywall, a fake news pode ser obtida gratuitamente na internet. Este paradoxo é o mote para ensaio de Nathan Robinson, publicado na Current Affairs (02/08). Laura Hazard Owen assina matéria no Nieman Lab retratando estudo publicado na Misinformation Review, da Harvard Kennedy School. Ele mostra que quando as pessoas verificam que um conteúdo questionável foi curtido e compartilhado muitas vezes, elas ficam mais propensas a compartilhá-lo. A despeito dos esforços das grandes empresas de informação em banir da rede os videos contendo fake news, eles continuam a proliferar por circuitos paralelos. Contrariamente ao que o senso comum imagina, o Nieman Lab (06/08) também revela que pessoas que se engajam com fake news estão bastante preocupadas com a verdade. Elas apenas acreditam que ela esteja em outro lugar. Abby Ohlheiser revela na MIT Technology Review um novo vídeo que, veiculado pelo America's Frontline Doctors, foi banido das redes sociais mas circula ainda entre grandes audiências por vias alternativas. O vídeo enaltece as virtudes da hidroxicloroquina para a cura da Covid-19 e afirma que o uso de máscaras é inócuo. O coletivo é patrocinado pelo grupo de direita Tea Party Patriots.
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